Renato Fragoso, popular "Bruxo"
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“MATANÇA DE PORCO”
Ainda aurora nem vinda: cinco da matina. Alvoroço no quintal. Chilreio de pássaro e gente, cantoria de galo, afiação de faca, enrolar de pito. Mutirão. A lamparina trêmula de luz bruxuleava os contornos dos homens na parede do galpão. Latido de cachorro. O cortejo em direção ao chiqueiro. O capadão ressonando em banha era peado e levado ao sacrifício. A faca reluzente sob o clarão da lua cortava o ar em busca de seu destino. O sô Zé do Tão tinha precisão cirúrgica. O animal quase não sofria. Isturdia mesmo esse acontecido. O grunhido do bicho estridente. Um menino sem assombros naquela manhã fria de um sábado de junho, vendo a matança de porco no quintal de sua infância. O sangue em golfadas entre bromélias e a sutileza do musgo que aveludava os passos sobre os tijolos no terreiro. O sonho, recôndito, pendia da cumeeira da casa na tênue teia de aranha. As palhas secas da bananeira crepitavam em fogaréu intenso para sapecar o cevado. Precipitavam chispas incandescentes ao céu.
- As estrelas nascem assim, dizia o pai ao filho, acreditando.
A pele seca e tosca do porco, um talho no toucinho, um corte no pé, um chanfrado na vida, para sempre. Uma tirinha de péia e um gole de pinga para os homens esquentarem o frio da manhã. Os olhos meus de menino cheio de espanto e curiosidade guardaram para muito mais tarde, para pouco antes da morte, talvez, aquelas imagens das bandas do porco sobre o jirau, clamando por eternidade. Tinha dó não do porco. As bandas eram vendidas, transformando-se em poupança para comprar uma bola de futebol no natal, quem sabe uma bicicleta? As carnes de segunda, depois de cozidas, eram conservadas em latas de banha. Sustento por longo tempo.
Os homens na lida dura. As mulheres, na dureza da lida, destrinchavam as entranhas do bicho, reviravam-lhe as vísceras e geravam filhos. São as mães que nos provêm de sonhos e mantimentos. Carne, osso, muciço, costela, toucinho e chouriço. A esmo eu me lançaria na vida, errante e cosmopolita, depois. Hoje não tenho jiraus, esses cheiros daquelas manhãs brumadas de infância. As vozes no lusco-fusco da madrugada, em resmungos. Embalde tentava decifrá-las enquanto o galo índio ciscava aurora e a vida saía para brincar fora das casas e dos corações.
O capim meloso ainda orvalhado semeava cristais pelos caminhos. O Dagoberto chegou dizendo que Gumercindo não viria, estava de colerina. Hoje, esse tempo não tenho, só lembranças. Poucas vontades. Sonho, quase nenhum. Mas desejo de reencontrar aquelas manhãs de matança de porco. A alegria daquela vidinha pífia, entre pessoas queridas, cheiro de chiqueiro, nacos de felicidade sem fim. O mundo era ali, naquele quintal, naquela casa, naquela rua. O resto não existia. Eu não sabia que viver de verdade, ser feliz, era sucumbir a lamber embira, como naqueles tempos, era chutar bola de meia e de bexiga de porco.
Vicissitudes... O rio da vida seguindo seu curso até esbarrar na morte.
Reminiscências restaram cristalizadas num canto da memória e hoje faíscam a lágrima concisa que ilumina essas lembranças.
A sós, sóis brilham dentro de mim. Por isso falo por clarões.
Postado por Fragoso - Idéias & Opiniões na Sexta-feira, 23 de outubro de 2009 às 11:25
“POESIA DE RUMINANTE”
À língua
A saliva aviva
O sabor do que me dói.
Devora-me a flora emocional
Degusta o que é mel
E o que é mal.
Revolve em vísceras
O que é fel
E o que é sal.
Às entranhas
Meu pedaço que é mar,
E o que é chão e o que é ar,
Heterogênea mistura.
Rumina,
ânima
Em nacos do que é líquido
Em fóssil do que lúcido
Pantagruélica,
regurgita-me
Sem me mastigar
Sou sua refeição diária.
Bruxo/Agosto - p/ José Luiz e Aluísio Santiago.
Postado por Fragoso - Idéias & Opiniões na Sexta-feira, 23 de outubro de 2009 às 11:04
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